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segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Rio: Cidade Partida

(Apresentada à PUC-Rio, em junho de 2008)

Uma cidade dividida entre o morro e o asfalto. Esse é o cenário da história contada por Zuenir Ventura, a “cidade partida”. Trata-se de um espaço real – o Rio de Janeiro dos extremos: comunidades carentes e condomínios de luxo, escassez e abundância, marginalidade e inclusão, bandidos e sociedade. Para passar de um ponto ao outro, o jornalista incorpora uma cartilha própria de comunicação comunitária e integra-se à realidade, aos medos e aos sonhos da favela de Vigário Geral. Seu livro é um misto de diário e reportagem ao estilo mais literário do newjournalism. Nele, o leitor acompanha o autor através do paralelo que divide os dois mundos – a passarela sobre a linha do trem – buscando compreender as raízes da violência que nos assombra.


A primeira parada é o Rio dos “anos dourados”. Zuenir volta à década de 50 e encontra, nesse que é considerado o tempo de glória da cidade, as raízes e primeiras manifestações da violência carioca. Enquanto dois jovens jogavam Aída Curi do alto de um prédio em Copacabana, o Chefe de Polícia autorizava o “extermínio puro e simples” de malfeitores e os esquadrões da morte faziam justiça colando umbigo de bandido, à bala, na parede, faltavam políticas de planejamento urbano e rural e sobravam ações que visavam remover comunidades carentes para guetos distantes dos olhos da classe média. De um lado, demonstrava-se que matar podia ser um direito, sem punições para setores da elite. De outro, delineava-se o isolamento que só manteria a cidade dividida ao longo dos anos, mas cuja existência só seria notada quando fosse rompido e o barulho dos tiros passasse a ser ouvido junto ao asfalto.


Já nos anos 90, as gangues de arrastão que espalhavam o terror nas praias da zona sul, formando paredões humanos que tomavam tudo o que encontravam pela frente, eram um sinal de alguma coisa estava errada. Meninos de rua foram mortos por policiais em frente à igreja da Candelária. O barulho se tornava mais alto. Algum tempo antes, em agosto de 1993, 21 pessoas foram assassinadas na chacina de Vigário Geral. O motivo do crime: a cultura do extermínio, ainda resistente na polícia, aplicada à vingança em um esquema de extorsão do tráfico pela própria polícia.


Aquele foi o momento do “basta!”. A partir de um movimento de Walter de Carvalho, editor de O Dia, Betinho conseguiu mobilizar personalidades de destaque na sociedade carioca em torno de um movimento pelo fim da violência. Mesmo concorrentes diretos nos negócios, como os representantes de O Globo e do Jornal do Brasil, concordavam com a idéia de que “o Rio tem que ser um só”. Assim, estava confirmada a imagem do Rio como “cidade partida” entre sociedade civil e bandidos e firmado o projeto segundo o qual seria pela integração dos últimos pelos primeiros, não pelo extermínio, que se chegaria à solução dos problemas. Nesse sentido, a condução das reuniões por Betinho, depois assumida por Rubem César, dando origem ao Viva Rio, permitiram que o movimento seguisse a linha da inclusão social e da mobilização pública no combate à criminalidade.


Zuenir Ventura procura mostrar, em seu livro, que duas das dicotomias da cidade não deveriam ser confundidas. A relação entre asfalto e favela não poderia ser diretamente associada à relação entre sociedade civil e criminalidade; ou seja, favela e crime não são sinônimos. Para pesquisar e, depois, provar isso, o jornalista integra-se à vida da comunidade – ainda como um elemento estranho, mas aceito – e participa dos seus ritos sociais (o baile funk, o churrasco de batizado, as rodas de conversa no botequim). Sua pesquisa estende-se, ainda, até a aproximação com os integrantes do tráfico e a entrevista com o líder Flávio Negão é o ponto alto do trabalho de Zuenir. Com ela, descobrimos um rapaz que começou a trabalhar aos onze anos, vendendo verduras, e entrou para o crime aos 19, quando se deparou com uma família em crise, com um irmão preso e com o desemprego.


A entrevista, obviamente, não absolve Flávio Negão, porém revela como favela e crime foram se associando no imaginário da sociedade. Tendo vivenciado aquela realidade, o autor transmite a compreensão de que a escassez, aliada à falta de perspectiva, leva à tolerância para com o que deveria ser considerado naturalmente errado. Quando uma família não consegue impedir que um filho seu vire bandido, resta-lhe somente aceitar aquela opção resignadamente. A convivência harmônica entre os dois amigos de infância, Caio Ferraz, sociólogo, e Flávio Negão, líder do tráfico, é prova disso.


Caio Ferraz foi a ponte que levou para dentro de Vigário Geral os ideais de inclusão e mobilização social propostos pelo Viva Rio. Com o apaziguamento do tráfico, a revitalização e colaboração de associações de moradores e com apoio externo, Caio conseguiu levar adiante a Casa da Paz. Sediado no imóvel onde foi morta uma família durante a chacina de 1993, esse projeto buscaria dar ocupação e qualificação aos jovens, de forma a afastá-los da criminalidade, e é emblemático por esse duplo significado de recuperação. Acompanhando a história de Caio, de Vigário Geral e do Rio, Zuenir Ventura aponta um exemplo de esforço pela recuperação da sociedade por meio do seu fortalecimento. Só a sociedade forte, pois integrada, poria um fim à distância que permite o crescimento de um outro lado, o do crime, que se alimenta da marginalização.


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