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quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Discretamente, um parque de arte urbana contemporânea ergue-se do cinza diante dos olhos de quem passa pela Av. Brasil

(Publicado em agosto de 2007 pelo NEO - Informativo Eletrônico do Centro Cultural de Laranjeiras)

Calçadas largas e limpas. A cada 20 metros, cobertas com uma longa e alta tela de material fosco capaz de filtrar a luz solar e formar um passarela com 1,5 quilômetros, erguem-se colunas de concreto. Trata-se de meros suportes para obras de arte. Estas, sim, inscrições em verde e amarelo, protegidas do vandalismo e do mau tempo com vidro. À noite, chamam a atenção com uma iluminação que as destaca e até chegam a causar confusão ao tráfego, como os outdoors digitais que distraem motoristas, mas são cartão-postal e ninguém reclama que olhar o Pão de Açúcar cause acidentes. Essa paisagem, entretanto, não existe. O que é real é a imagem de chafarizes e estátuas que compõem, elas mesmas, um jardim, onde há verde, mas, em vez de árvores, chamam a atenção bronze e pedra, à beira-mar. É uma imagem real, porém distante, exceto para a população de Estocolmo.

O Rio de Janeiro também poderia ter seu Millesgården, o parque de esculturas do casal Carl e Olga Milles, na capital sueca. Ao menos Recife reconheceu a oportunidade de criar uma nova atração, ao mesmo tempo em que celebra o artista da terra Francisco Brennand. O Rio, que não tem Brennand, mas teve de Mestre Valentim a Hélio Oiticica e detém, escondidas em largos e praças, uma coleção de obras de notáveis como Louis Rochet, Rodolfo Bernadelli e Leão Veloso, ainda não percebeu o patrimônio que se espalha sob o viaduto do Caju, ao longo da Avenida Brasil, como uma oportunidade de erguer seu próprio parque de arte urbana, arte inserida e produzida em contexto urbano, um passeio público de concreto.

Foi uma das áreas mais degradadas do centro da cidade, no território sempre politicamente revitalizável da zona portuária, que José Datrino, conhecido como Profeta Gentileza escolheu para pintar 56 murais, com inscrições que propunham uma crítica ao mundo contemporâneo e uma alternativa ao mal-estar na civilização. Ali, estaria mais visível a mensagem do andarilho que, nas barcas e ruas, pregava o respeito ao próximo e à natureza. Gentileza ouviu seu chamado após o incêndio do Gran Circus Norte-Americano, às vésperas do Natal de 1961, em Niterói, onde morreram mais de 500 pessoas. Em consolo aos familiares das vítimas, ele decidiu plantar um jardim sobre as cinzas do circo. Esse é apenas o contexto inicial de uma formação que avançou até os anos 1980, quando o profeta, consolidou nos painéis uma expressão artística que assume a forma de comunicação pública, comparável a manifestações dadaístas e surrealistas – na concepção do professor da Universidade de Oxford Raymond Williams –, anterior à recente exaltação do grafite, como forma de expressão de uma parcela reprimida da massa urbana.

Ainda que não fosse a intenção de Gentileza, o valor de sua obra não está na mensagem, mas no meio, que há de ser consolidado como arte, plástica, por qualificar-se nas características de unicidade, comunicabilidade e relevância histórico-temporal. Talvez, seja mesmo mais artisticamente aceitável do que o grafite, como expressão da arte urbana brasileira, visto que quase nada se definiu de um caráter nacional existente em uma manifestação que se repete, com iguais cores e técnicas, em São Paulo, Nova York ou Tóquio. Um Basquiat, que consegue firmar uma identidade em meio a um movimento sem organização, que se repete em vez de se reinventar, é exceção. Especialmente, quando se percebe que, não fosse pela assinatura, seria impossível apontar a origem de uma ou outra obra que, de tão iguais, vão deixando de representar a cultura popular para inserir-se na cultura de massa e, aí, tornam-se antítese das aspirações de Horkheimer e Adorno.

Com o grafite, os murais de Gentileza compartilham a apropriação do espaço urbano ultrapassando os limites de sua função original e reconstituindo-o como espaço próprio do discurso artístico, para o qual se ampliam as formas de recepção da arte-discurso. De modo contrário, nas demais comparações, um painel do profeta de Cafelândia – sua cidade-natal – permanece uma obra de Gentileza, inconfundível, reconhecível, preservando sua aura mesmo em baixo de um viaduto, onde disputa a sobrevivência com cartazes de tarólogas e pichações. Trata-se de exemplar da “mídia radical” e do binômio “arte-cidade”, sujeita, portanto, às readaptações e reutilizações típicas do espaço metropolitano.

Quando, ao longo dos anos 1990, esses painéis foram cobertos “de cinza”, suscitou-se uma reação. Seria preciso preservar, logo após a devida restauração. O patrimônio observado rotineiramente, mas cujo valor permanecia pouco visível, despertou a atenção da cultura de massa e, como é comum desta, ele foi apreendido e multiplicado. De mídia, tornou-se midiático, vendável e, portanto, digno de preservação. Na canção de Adriana Calcanhoto surgiu o hino de manifesto e a ele seguiu o projeto Rio com Gentileza, da prefeitura. Os murais foram restaurados para degradar-se novamente, para ocultar-se sob a pressa de quem passa de carro sem olhar, sem causar acidentes, sem luzes para destacar. Se é honesto vender a arte, torná-la consumível à massa, parece que a não constituição de um parque urbano em homenagem ao Profeta Gentileza causa prejuízos pelo que se deixa de ganhar. Estocolmo vende Millesgården, o Rio não.


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