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sábado, 6 de setembro de 2008

"O Redescobrimento do Brasil", in A Invenção do Trabalhismo


(Apresentada à PUC-Rio, em abril de 2005)

Desde antes do Bonde São Januário (1941), que, no lugar do “otário”, “leva mais um operário”, já certo de que “quem trabalha é que tem razão”, porque “a boemia não dá camisa a ninguém”, o Governo Vargas exibia aquela que seria sua marca. A exaltação do trabalhador, em vez do malandro, atendia à propaganda ideológica de Getúlio, que propunha estabelecer a imagem de um governo próximo às massas proletárias e, até, saído dela, como se, unidos, cooperassem para o desenvolvimento do estado-nação chamado Brasil, aquele “brasileiro”, do “mulato inzoneiro”, cantado nos versos do samba-exaltação e protagonista de filmetes e cartazes do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). São, pois, o protecionismo trabalhista e a construção de um Estado Nacional os dois componentes da revolução ideológica, iniciada em 1930 e realizada em 1937, que a historiadora Angela de Castro Gomes, em O Redescobrimento do Brasil, aponta como linha-mestra do projeto político de Getúlio Vargas.

A partir de artigos publicados na revista Cultura Política, a pesquisadora avalia o discurso político de edificação de um Estado “verdadeiramente nacional e humano”, assim oficialmente definido pelo DIP. No controle da produção de imprensa, cinema, teatro, rádio, turismo e propaganda, esse departamento exerceria a função de construir a realidade que legitimaria o Governo Vargas. Ponta de lança da produção e controle da produção ideológica e cultural brasileira, ele assume a posição de um Ministério da Verdade, como aquele descrito por George Orwell, em 1984: um braço da ação totalitária que tem o controle total das comunicações, permanentemente ligadas ao cidadão comum, fazendo-se onipresente, reescrevendo a história e manipulando a verdade, de modo “a fazer com que a mentira soe como verdade e o crime se torne respeitável”, como aponta Orwell.

A história que Getúlio Vargas queria ver reescrita – e aí está o próprio redescobrimento que serve de título ao texto – era a de um país integrado para além do que fora durante o Império. Era, ainda mais, a demarcação de um período degenerado de liberalismo durante a Primeira República, o qual, por omissão, não teria sido capaz de dar vida digna ao povo brasileiro; antes, optando pelo determinismo histórico e geográfico, de inspiração européia, que condenava o país ao atraso por sua inferioridade de raça e caráter.

Tal como os governos totalitários que se constituíam na Europa, o projeto Vargas era o de um Estado interventor, dotado de um eficiente aparato ideológico. Não tão interveniente, contudo, a ponto de subordinar e absorver o indivíduo, eliminando a iniciativa capitalista, como nas experiências fascistas ou comunistas. Decerto, apenas o suficiente para destacar-se dos regimes liberais, omissos que seriam em relação a conflitos e carências sociais. Angela de Castro Gomes aponta-o enquanto projeto que situava o novo Estado em um ponto intermediário, aliando o modelo organizador estatal à promoção do welfare state, de forma que chegaria ao paternalismo encarnado pelo Presidente “pai do povo” ou “pai de todos os trabalhadores”; estes, promovidos a células-matriz do desenvolvimento da nação.

Citando a “expressão unívoca da vontade nacional”, Angela mostra como esse projeto dependia da aliança entre elite e força trabalhadora e daí deriva o sentimento de união que Vargas pretendia restaurar, reescrevendo a história. União, pois, que adviria da elaboração do ideal nacionalista, do amor à pátria que identificaria a todos, ricos e pobres, como irmãos, porque brasileiros, desde que cada qual fizesse sua parte, o que, por parte do povo, significa trabalhar.

Getúlio Vargas soube usar a máquina cultural para exaltar o país e exaltar o trabalhador. Daí viria o Eu Trabalhei, de Roberto Roberti e Jorge Faraj, ou o Bonde São Januário, de Wilson Batista e Ataulfo Alves, adaptado de forma a adequar-se ao regime. É também por posicionar-se entre a massa trabalhadora e as elites capitalistas que seu governo teria alcançado um ponto intermediário. Trata-se de um ponto de equilíbrio sobre o qual se sustentou, manipulando sindicatos e ameaçando com o controle das greves, e, ainda, capaz de confundir democracia e totalitarismo, viabilizando a revolução e garantindo o que a autora aponta: os acontecimentos de 1937 como meras realizações do projeto de 1930. Em certo ponto, aliás, ela equipara a imagem percebida da República Velha ao estado de natureza hobbesiano, o que é interessante se considerar-se o projeto Vargas como a elaboração de um contrato que identificaria o Estado Novo ao Leviatã, mas cujo corpo se comporia por trabalhadores – assim deveriam ser para alcançar a condição de cidadãos – entrelaçados e que traria nas mãos a espada e, em vez do báculo, um microfone.


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